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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

calçada

Esfregou, enxovalhou, partiu em mil pedaçinhos e se foi... pelo piso oco e seco. Tudo num só golpe, naco aberto como vagina bangela. Vontade de nada... só deglutir o vazio chão naquela tarde plena de maresia e calor. E assim fez... calçou o pé no sapato esquecido, caminhou em silêncio gregoriano e verteu água benta nos olhos. Era preciso zerar tudo. Perdoou feridas, deixou o rastro se perder de vez e ganhou calçada. Primeiro andou segurando o corpo, tão atrapalhado quanto o fogo da primeira vez. Aguardou o encontro com pulsos aos pulos... depois sentou no umbral e cerrou as pestanas num sorriso. Sim, estava feito.

Valéria Motta

terça-feira, 23 de março de 2010

Vontade desconhecida

Não tenho palavras bonitas para me expressar.
Não tenho nenhum tesouro, ou se quer algo parecido, para lhe dar.
Também não sei dizer nenhuma prece
que seja um sincero voto de servidão.
Não, não é nada disso o que eu posso lhe dizer.

Só posso saber do que sinto quando um cruel pensamento me atormenta
com tua imagem, em atitudes que nunca existiram.

Por que essa invasão desmedida?
Por quê?

Qual o mistério desse desejo se nada o alimenta?
O mistério é uma fuga.
É a vontade desconhecida de esquecer-me.
Busco o desejo de partir.
E não posso.

Por isso penso irrealidades
Na vontade desconhecida de esquecer-me




sábado, 9 de janeiro de 2010

Alento en aire

Foi simples... guardar e não sofrer mais. Suór que evaporou em espiral...enlace, mãos desencarnadas. Saudade de nunca mais pisar da mesma forma. Contradança cheia de vazios... vontade de reter o que escorre do corpo... tão doce e lento, como beijo apaixonado que não cansa nunca. Alento que suspende o relógio do corpo e tudo enrijeçe...súbito.
E o corpo aumenta, voz muda de tom... tudo aquiesce como brasa esquecida. Seu ar no meio dos meus olhos, riso abafado e desejo com cheiro de licor. Calice entornado num assoalho navalhado de lembranças.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Dancing

Dancing

valéria Motta

Colocou suas mãos magras no balcão e fez sinal para Francismar, que veio rápido com seus olhos cheios de oceano.
- Já tá indo?
- Muita mulher hoje. Estou com disposição, não.
-Mas tu é mesmo um cara esquisito, hein? Uma fila de pernas louca pra riscar o salão e o senhor desdenhando.
- Já viu a qualidade da fila?
Francismar dá uma conferida discreta e sorri de boca fechada, assentando com suas pestanas compridas.
- Realmente... o mar, hoje, não está pra peixe.
- Deixa que na quarta lanço minha rede.
- E pra quê esperar até quarta? A semana está só começando, homem.
- Vivo só disso não, Francismar. Te devo quanto?
- Só foi uma cervejinha e uma porção de tremoços.
Retira do bolso algumas notas amarfanhadas, deixa sobre o balcão e se despede.
- Pode ficar com o troco.
Desce as escadarias do dancing sem a menor pressa. Cada degrau um acorde naquela sinfonia de cheia de mistérios e solidão. O choro da sua última cliente ainda grudava na sua retina.
- Acabou com meu estoque de lenços presidente... mulheres.
E balança a cabeça como quem se pergunta com quantas entranhas se faz uma alma feminina.
- Para soltar uma informação precisa dar mil voltas... e gastar um balde de lágrimas. Na próxima, cobro adicional de insalubridade. Hormônio em excesso dá nisso.
E acende seu último cigarro enquanto a banda afina seus instrumentos, pernas se ajeitam nas meias e as mãos de Francismar inundam de breu aquele imenso assoalho de parquet.
- Não quero saber de dama nenhuma caindo no chão hoje, hein?
- Mas é segunda, Francismar.
- E daí? Salão tem ritual, dona Imaculada. Não se pode sonhar no limbo, não é mesmo?
Imaculada apenas concorda com um aceno de cabeça e cutuca as demais que repetem o gesto, com suas cintas apertando as costas e dando cintura num corpo que há muito se multiplicara.
- Esta cinta é um espetáculo, Leninha. Em uma hora a gente desce um manequim.
- E tu acha que tô com essa falta de ar aqui, por quê? Acabei de descer dois números, filha.
- Danada...
- Só espero que eles não ataquem de soltinho... com esse aperto aqui só consigo ir até o samba canção e olhe lá!
Metais afinam enchendo a casa com o suingue norte americano. Não seria uma noite fácil para ninguém. Movimento fraco, banda enrolando, Franscimar contando as mesas, mulheres na sua ilusão de começo de semana e ele com seu corpo magro, terno de linho creme e sapato de amarrar bicolor, se deixando levar para casa com suas rodelas de fumaça, seus dedos compridos e o balanço do molho de chaves.
Até que... estanca ao vê-la retirando de dentro do sutiã uma nota enrolada e pagando gentilmente ao porteiro Big Jeff –misto de segurança, porteiro, dançarino de aluguel e cantor nas horas vagas.
- Brigadinha, Jeff.
- Já disse que com a senhora não tem tempo ruim. Se tiver na lona, o big libera.
Ela apenas sorri com os olhos, ajeita a cintura na saia rodada e sobe as escadas com o frisson da juventude. Esperança na ponta dos lábios, coração aos pulos e o corpo nervoso. Gostava desta sensação de descoberta, de coxia em dia de estréia. Quantos rodopios seriam necessários para que o tempo parasse e tudo ser como o deseja manda? Só a chama nascendo do enlace e o salão abrindo seus braços de grandes janelas. No fundo, dancing só servia para este instante e nada mais. Estava com a esperança acolhida no meio dos seios, liberta e feliz. E passou leve sem nem olhar para os lados.
Mas ele notou... e suspirou longamente como quem aprisiona aquele aroma que subia as escadas e se misturava ao tabaco. Algo de rosa, cravo, e um cítrico para amenizar este amargor que sempre tivera em sua língua. Que segunda feira seria essa... há muito não sentia um cheiro tão intenso assim. E tinha medo, seria capaz de confessar depois. Era hora de negociar num único murmúrio.
- Vou pagar pra ver, mas nada de umedecer a boca com palavras levianas, Macedo. Nada, hein?
Big Jeff na malandragem de quem conhece todos os degraus, sacudiu sua imensidão e brincou.
- E aí, doutor? Não resistiu, né?
- Fazer o quê, Big Jeff?
- A sorte é que tu mora em cima. Vai ser façinho.
- Aí , é tu que tá dizendo...
E o suingue já corria solto pelo salão. Era preciso subir aos atropelos. Antes que a perdesse completamente. Tem sempre alguém na esquina da pista pronto para pegar a dama alheia. Não queira dar esta chance, mas também não faria a corte. Só queria olhá-la com quem vê um filme milhares de vezes e depois se perder no ladrilho suado do banheiro. Será que já está dançando?
Conforme balançava seus ossos magros naquele retorno inesperado, ia desvendando aquela silhueta perfeita. Era linda... seios cheios, anca larga e pernas desenhadas a bico de pena. Tinha carne no lugar certo, nem magra demais – como ele – e nem gorda como a fileira de pernas que coroavam o salão. Era uma mulher que não se poderia deixar passar em branco... ela pedia assinatura.
Quando apontou no salão, sentiu-se como na primeira vez. Garoto de dezessete anos. Cabelo gomalinado, terno emprestado, sapato vulcabrás e olhar de espanto e gozo. Mulheres dançavam lânguidas de olhos fechados, casais faziam firulas no meio do salão e ele se embebedava de Cuba libre, sentindo-se pela primeira vez homem. Incrível como sempre retornamos ao que fomos um dia... ingênuos. Mesmo tendo passado bem dos 40, prateado as têmporas, vincado o rosto e encapado os dentes... ainda assim, ele se sentiu um menino diante de uma mulher como aquela. Cheia de liberdade nos olhos e fogo no corpo. E antes mesmo de pedir mais uma cerveja para meu fiel Francismar, ela já veio ao seu encontro com sua bolsinha de bolinhas brancas.
- Perdi muita coisa da banda?
- Só um set.
- Menos mal. Quer dançar comigo?
Assim direta como criança que pede uma bala. Ficou sem ação. Francismar só iluminou seus olhos, como quem vê uma grande onda e sorriu discretamente. Assenti num monossílabo, ela sorriu e enrolou seus cabelos para o alto com as mãos. Tirou um grampo de dentro do sutiã e deixou alguns fios caírem no rosto, emoldurando o desejo dele. Achou graça.
O fox se transformou num bolero, quando o trombone deu o primeiro acorde. Sabia que era daqueles que se dançava trançando as pernas, como um gato que serpenteia o chão. Beijou a mão da dama e a conduziu suavemente para a ronda do salão. Agora era tudo ou nada.

Sempre gostei de dançar na segunda feira. É bom quando os começos tem cheiro de fim de noite. Chão espelhando passos, gotas miúdas de ilusão descendo pela coluna e um leve aspirar de sonho. Este ritual semanal riscando na alma um único recado: a vida é rodopio, vamos nos divertir. Este é meu lema, por isso corro os dancings desta cidade atrás do giro perfeito. Será que este magrelo com cara de filme noir vai conseguir rodar a manivela até o tempo parar? E sermos apenas eixo, força que brota do olho do furacão? Não parece... mas se esforça.
A banda quebra o ritmo e dobra o tempo, começamos um pião de cruzar a pista e ele me olha com tanta intensidade que quase me convence de que tudo pode valer a pena. Sinto suas mãos desencarnadas apertando meu pulso, a distância entre nossos dorsos diminuindo gradativamente. Não, não foi pra isso que vim aqui. Gosto deste limite da física, muita proximidade quebra o encanto da rufada de ar no meio dos olhos. Sim, gosto quando sinto este leve sopro entre minhas sobrancelhas. É brisa leve que refresca memórias afetivas e nos faz rir de todas as ilusões perdidas.
Voltamos na cadência de um puladinho, um pé perseguindo o outro e o malemolejo dele é bom, não nego. Quase sinto os ossinhos do seu quadril roçando nas minhas fartas ancas. É bom, amacia o desejo. Será que com ele sigo pelo noite? Uma tirada de perna, um giro simples e o samba molha nossas testas, desfiando os desejos. Percebo a inveja daquela fileira de pernas brilhantes, com seus leques afoitos. Será que o cavalheiro não vai mudar de dama? Voltou aqui pra quê? Se perguntam entre uma golada e outra de coca cola com limão. Acho graça.
- Quer parar?
-Imagina. Agora é que vai começar o set que mais gosto.
- Milonga, acertei?
- Tango valse. Porque não gosto de parar unca.
E ele sorriu abaixando os olhos, como numa reverência.
- Primeiro tem que saber sofrer, depois amar
- Depois partir.
- Perfume de “ Naranja em flor... belo tango. Mas não é valse.
- Mas é minha vida. Vamos?
E a orquestra reinicia, agora com um bandoneón chorado... intenso... com seus veios de dor e saudade. Ele delicadamente subiu um pouco meu braço e me apertou num estilo bem milongueiro. Estava me convencendo o rapaz. Era bom dancarino, sim. Fazia o arranque com agilidade e cautela e me girava no pulso certo com muitos “oito cortados” e ganchos. Estava feliz, tinha que admitir. Mas não deixava transparecer. Uma dama nunca deve revelar o que seus olhos guardam, mesmo quando rodopia de olhos fechados. Se nos entregarmos, a contradança acaba... e o salão da nossa alma mofa com suas cortinas pesadas e seu chão em frangalhos. Não, esta chance ele não teria. Mesmo quando senti sua barba azulada gemendo no meu rosto...nem assim, consenti. O importante era não parar.
- Que linda...
Murmurou.
- Imagina...
Sempre falava isso quando palavras voavam pela minha cabeça... na falta, imaginar era sempre uma forma de ocupar espaço. Resposta vaga que pode dizer tudo que não queremos dizer. Imagina... o que realmente se passa dentro de mim agora, com esta música que rodopia aos borbotões , este homem tão leve como folha de seda e tão intenso como tabaco na boca. Não iria sucumbir ao ardor... juro.
Mas sucumbi.... sozinha no banheiro do dancing. Senti seu olhar desenhando minha coluna quando pedi licença para ir ao toalete logo que o set acabou, as pernas afoitas se descruzaram e os leques tamborilaram nas mesas. Ele deu um meio sorriso e me olhou como quem acaba de acordar.
- É rapidinho.
- Sou paciente.
E fui ajeitando a calcinha em cima da saia cinturada e as intenções expostas. O peito acelerava tanto que foi preciso molhar a nuca com água gelada antes que meus dedos se perdessem na noite mais escura que habita em mim. Súcubo com cheiro de laranja.
-Mulher não resiste a um toalete, não é não?
- Com certeza Franscimar... e essa pelo jeito, vai demorar.
- Mas a moça nem bebeu!
- Isso é o que você pensa.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

Tempos e Movimentos Continuação

Tempos e movimentos em processo
por Valéria Motta

Continuação...

Movimento Cinco – o troco

Já abri e fechei este jornal umas mil vezes. A rejeição nos coloca na espécie dos animais ridículos. Tudo bem, faz parte.... mas é o que me resta neste cotidiano de pautas tão vazias. Acordo, pego uma vasilha de passas secas, encho a boca cheia de fome e sinto aquele azedinho escorrendo pelo maxilar. Gosto de mastigar a dor logo que acordo. E entre uma golada e outra de café frio percorro aqueles nomes todos. Qual deles me dará a chave certa? A forma como ela me deixou plantada naquele bar é mais do que um fora, é mais do que uma certeza. É nódoa, é travo, é mordida no doce que nunca comemos. Por isso devoro tantas passas num só golpe. Preciso engolir minhas escolhas. Detetive Marcondes, ou simplesmente Senhor Y? Que diferença faz quando tudo que preciso é municiar meus dias com o cotidiano dela. Só quero brincar de títere, voltar a sorrir ao marcar no relógio esses ponteiros que ainda insistem na minha sombra. Cada hora longe do meu amor é delírio deambulatório. Cheio de preces vazias e esperanças esgarçadas por palavras esquecidas. Mas não esmoreço até completar o quebra cabeças, até dizer... sim, agora, tenho controle. Sei dos seus hábitos, mulheres, traições. Sei da fragilidade, medos... sei do que já posso fazer com você. E antes de enroscar minha língua cálida na sua, quero esfregar no seu nariz afilado toda sordidez do seu caráter. Seu egoísmo, juro, vai se transformar em papel de bala pranteada... que farei questão de cuspir depois da festa. Sorvo o resto do café gélido, dobro o jornal e amanheço o dia com mais coragem.

Movimento Seis – o pacto.

Me recebeu com hiatos longos. E eu desabei como fruta madura, despejando dor e mágoa em cima daquela escrivaninha escura e cheia de anotações. Um copo d´água tirada de uma moringa – sim , tem gente que ainda usa moringa... - um lenço de linho branco esticado no ar, uma palavra de conforto. Ele sabia como corrigir cada nota da minha destoada espécie, afinal era um profissional do desespero alheio. Anotava minhas súplicas enquanto me afundava naquela poltrona de curvin verde musgo. Cada lembrança me esquentava a nuca. Agora sei como confessar é doloroso. Contei todos os detalhes, não escondi nada. Primeiro encontro, beijo roubado na biblioteca, trepadas na minha casa, telefonemas insones. Enumerei registros, abusos, risos e alegrias. Não podia voltar atrás. Não depois de revelar para aquele homem de faces encovadas o amor mais lindo que já tive em minhas mãos. Amor de cor nanquim, que mancha a folha branca, embebeda a caligrafia e torna o bem querer errante. Afundei mais até não sentir meus saltos tocar o chão. Por um instante quis desistir, escorrer pelo carpete cinza rato e sumir em qualquer beco por aí. Mas ele definitivamente não tinha pressa. Me ofereceu outro lenço de linho branco – devia ter uma coleção dentro daquele paletó - e esperou meu peito cessar, o olho ficar no lugar e braços se aquietarem no corpo. Por fim , deu um leve sorriso, subiu persianas empoeiradas, estendeu sua mão descarnada e ofereceu seu cartão , selando nosso pacto. Estava dada a largada. Era hora de mudar de paisagem e flanar com o gozo da futura vingança nos olhos.

Movimento Sete – a armadilha

Na vitrine, palavras penduradas. Folhas espalhadas, cheiro de papel e tinta. Ela com seu olhar de mar profundo, perdia seus dedos por entre os cabelos displicentemente e sequer percebia o quanto me aproximava. Sorrateira, fui quase um sopro no seu ouvido.

- Tão linda...

Ela se assustou, olhou ao redor, mas não me viu. Mergulhara meus óculos gigantes dentro da bolsa cheia de compartimentos. Para seduzir é preciso o saber feminino. Qual momento certo para disparar a intimidade casual. Sim, nós mulheres, temos esta liga preciosa dentro de nós. Basta um incidente, uma compaixão e pronto, o sofrimento já está misturado. E neste repertório, sou boa. Conheço todas as deixas e jamais deixo mulher minha terminar a frase. É um segredo, confesso. Espiei por debaixo das lentes, o momento certo da corte. Poderia me adiantar, forçar alguma situação, mas nada como pedir para o destino ser gentil com você. E assim, segui de mãos dadas com a minha natureza e esperei em silêncio que uma corrente de ar a conduzisse para dentro daquela livraria. Sorri quando a folha pendurada no varal das ilusões voou em círculos até cair bem na sua frente. Aí sim, ela poderia me ver e perguntar.

- É seu?

A pauta já tinha sua primeira nota, e o tom sabia de cor. Um sorriso, agradecimentos, um chá de rosas, troca de inconfidências, horas que passam aos galopes. E no começo da noite, minha mão na cintura dela se encarregaria de fazer o resto. Hoje durmo feliz, com pêlos eriçados, boca suada e peito inchado. Mais uma que se perde como veia azulada na pele alva.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Tempos e movimentos, em processo

Tempos

por Valéria Motta

Movimento Um – a espera

A noite tomba morna e uma quentura escorre pelas paredes dos casarios de cor âmbar. Tudo parece fazer sentido naquelas ruas que espreitam a minha saudade. Esse tempo que congela no céu e gira como um catavento de ilusões. Dessa vez vai ser diferente, tenho certeza. E sigo... com o barulho do meu salto no chão de pedras. Acreditando sempre na surpresa da esquina, no beijo roubado e no gosto dela que nunca saiu de mim. Ah... como ainda é manhã aqui no meu colo, este sentimento enlaçe na cama amassada de lençol, as coxas que se enroscam, brincam e a língua cheirando a borra de café. Como queria ainda estar no ontem, e não neste agora soturno de espera... compasso que parece ter esquecido do fim. Sim, há sempre um fim em tudo, mesmo quando a vista embaça num rosa bebê que gradua para o shock , cor da intimidade mais feminina. Verbo que só quer saber de conjugar para a segunda pessoa. Tu e eu... nós e o fosso de mistérios que desfolho, brinco e me entrego. Caminho ainda e já vejo a noite pelos becos me encarando com um sorriso melífluo nos lábios, rindo-se toda. Mas minha boca doente de amor, não entendeu o recado e seguiu em frente até chegar ao destino. A mesa , o vinho, o relógio que insiste em ir para frente, as pessoas que insistem em ir para trás. Noite cada vez mais funda, cada vez mais nada... cada vez mais certeza.... certeza que não quero ver. Verbo que perdeu a voz, pessoa que não vem mais.

Movimento Dois – a dor

O céu se espreguiça em matizes cheias de mágoa. Tudo sentimento vazio, olho que incha, mão que crispa, corpo que treme em desamparo. Criança que caiu do balanço e se despediu de mim. Nunca a dor me foi tão vasta como uma aurora triste que insiste em me consolar e dizer baixinho: calma que passa. Passa nada! No máximo tira férias e depois volta no meio do sono, a agitar os sentidos e cobrar seu preço. E o preço segue sempre a mesma equação: raiva, elevada à dúvida e dividida pelo perdão. Resultado? Um ponto no infinito, uma solidão feita de zeros.
Choro e só lamento este vazio cheio de vãos. E juro nunca mais me enganar assim.

Mas ela podia ter dado um sinal... qualquer um. Pelo menos para ver meu peito inchar de dor, querendo a vastidão do colo dela.
Saudade é uma palavra que não deveria existir. Só faz mal.


Movimento Três –­ o salto

Tarde cálida, abrasadora, de fazer fios d´água escorrerem pela nuca. Caminho com minhas saias esvoaçantes e tento sorrir. Como se tudo já estivesse no seu devido lugar, meu armarinho de desejos trancados. Mas a memória trai com tanta precisão que nada me escapa. Primeira cruzada de perna, pedido de desculpas, mão que só sabe roçar suavemente... e depois, cerrar de olhos, narinas abertas, pulsos fortes e risadas frouxas. Intimidade de iguais. Tudo sucumbindo àquelas dobradiças cheias de carne. Nunca pensei que amar uma mulher fosse esse salto de trapézio. E agora? Onde me agarro?

Sigo caindo e imaginando o meu amanhã... sem rede, sem prato na mesa e sem cigarros amassados.

Movimento Quatro – a vítima

Cruzo com gente que nem imagina o que posso fazer com elas. Sempre fui mestre em devorar instintos, seduzir simplesmente. Sei o que as pessoas querem ouvir e dou a elas este direito. E só. O resto é presa, tombo, diversão. A rede quem puxa sou eu... mas no final da esquina nenhuma luz aquece o meu rosto, nenhuma língua me excita. Só respiro o ar pesado das minhas presas e sigo em becos como bicho acuado. E se não fui àquele encontro é porque sou fiel a minha natureza. Depois que marco...perde a graça.
Chuva em poças

Por Valéria Motta

Chove nesta imensidão de águas turvas. Poças que enxovalham minha cabeça exausta. Exausta de pensar. E se não estivesse mais aqui? E se continuasse do ponto que parei... na vírgula daquele entreato? Sigo nesta pauta frágil com meus velhos rabiscos, cheios de letras amareladas, amores doídos, frases não ditas. Feneço fresta a fresta cada palavra lida e lembro daqueles desencontros tontos que sempre me disseram não venha. Mas fui em todos, com maxilar aguado de paixão, boca trêmula e o sexo em concha. Furei ondas, busquei o fundo de todas as intenções e fraquejei ao sentir a espinha serpentear como um bicho que se esconde rapidamente. Movimento brusco que nem a retina capta. Tão réptil... E neste átimo, apenas sensação de que algo escorreu por entre os dedos. Sangue que rompe, se esvai... num lamento agudo. E com os pés machucados pela agonia, sentei no meio fio da chuva e chorei com as mãos em prece cada silêncio teu. A cama dividida pelo seu dorso pesado, o descompasso da dúvida e a boca selando na macaneta da porta o frisson da despedida. Perna bamba, suór, respiração exata, corpos encaixados, ganidos e pequenas mortes. Assim segui nesta ciranda de trocados , onde qualquer gesto tinha valia e toda palavra tinha sua sonoridade. Bastava sussurrar e tudo se perdoava naquela paixão que insistia em habitar meu corpo.. Paixão de deliciosas armadilhas.
Mas hoje, deixo o barulho da água apenas pontuar meu chão e sigo mais oca de mim. O aquietamento do horizonte me orienta com sua plenitude... não temo as ondas e nem as choro mais. Somente carrego algas enfeixadas de afetos, dedos entrelaçados e um leve frescor nos lábios.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Pequenas Vilanias

Pequenas vilanias

Por Valéria Motta


Eu posso dizer que não agüento mais, que o ponto do vértice é logo ali. A me espreitar. Firme, inquisidor. E tudo torna-se , por um instante, aprisionamento. Vontade de escapulir do beco, o olho de soslaio que escorrega pela pálpebra e faz sua estréia no mundo dos desejos. E sonhar de olhos abertos, sem embaçar a retina, sem vitrificar os movimentos. Simplesmente sonhar...

Só que o vértice, é o vértice. E nos sentimos imprensados, sem a grandeza da perspectiva. O co-ti-di-a-no segue intenso, como gota grossa na nuca. Pesada, correndo no rumo que achamos que se deve ter. Seguro, segurança e todo este naipe de tópicos que nos etiquetam na mente – e tem lá suas razões. Para onde ir? Quando chegamos na beirada e depois....o nada, o absoluto abismo? Escada sem degrau, cansaço, Simplesmente cansaço. E aquela vontade de revidar. Como moleque de rua, como criança que não leva desaforo para casa. A porção nossa de lavanderia nos dê hoje, o grito. O berro, o despejo dos nódulos encrustados. Anos a fio na navalha do bom senso. E para quê? Para quem?

Então sigo...a cabeça em chamas.....a coluna em frangalhos.....os olhos baços. Como quebrar sem trincar? Reverter a chave? Respiro profundamente. Deixo o ar sair sonoro, intenso ...quase bafo.....a panela de pressão sibila. É hoje que transbordo.

Sério. Ponho pra fuder. Chega de diplomacia, de: desculpa , se... mas, é que....Chega de conjugar tudo no condicional.....tanta politesse..e daí?

Vamos lá, coragem. Depois abismo, salto livre.
( ok, pelo menos esborracho mais leve)

Hoje , não tem escapatória. Tolerância zero, um dia de fúria.

Então.... respiro.... espreguiço...

Acordo sozinha novamente, a casa um pouco espalhada. Cara amassada, xixi intenso, vontade morna. E a pasta que cai no chão, a válvula meia bomba, o vazo que quase entope. Enche no limite, pára e ... ufa, não foi dessa vez. Quase tudo tem sido assim neste últimos tempos. Alívio e desilusão. Por pouco, escapo de uma fofoca na rádio corredor, por um triz não transformo minha vida econômica numa bola de neve, por um gole a menos, não paro no hospital com dor na boca do estômago... boca que sangra a cada vez que digo para mim mesma: ainda não foi dessa vez....

E um fio amargo escorre no canto dos olhos. Como fui capaz de não reagir? Enquanto a carne tremia de raiva?! . Rejeição fez do meu café... frio gélido.

O telefone toca, cortando a minha realidade – e já consigo entende o significado disto? Ensaio o texto... respiro fundo, tento segurar as palpitações na minha mão...mas ...rebate falso. É a insuportável mulher do telemarketing, com sua voz falsamente doce e monocórdica me perguntando o que acho dos serviços do banco tal, se estou satisfeita com os serviços do banco tal e mesmo que eu diga que nada me satisfaz, que os serviços do banco tal são uma bosta, que as tarifas são um assalto e que os cartões que me mandam , sem eu pedir, é claro, vão para o lixo; assim mesmo, a insuportável me ignora solenemente e segue em frente com seu discurso ensaiado. Aí, desligo o telefone na cara dela com um sonoro e polifônico: Foda-se, foda-se, foda-se

Mas isso...eu não fiz não com ele. Alguém sempre paga o pato. A verdade é que não tive coragem de ligar para cobrar os serviços que ele me prometeu.....

Quer ser minha namorada?
A gente faz tudo muito bem...saudades
Estou louco para te dar um beijo
Para os anais: a orquestra de passarinhos e você. Estou no céu.


e não cumpriu.

“ Desculpe estar escrevendo, mas este é o meu ofício. O problema é comigo. Pessoas certas na hora errada. Você é uma pessoa maravilhosa, mas não consigo te amar. Amigos?”.

E a última imagem: beijo na soleira da porta...beijo de cinema, de entrega ..de não fuja de mim.....


Ridículo. O sofrimento é ridículo.


Então me resta co-ti-di-a-no. O lugar comum do nada como um dia atrás do outro. O trabalho que enobrece – quem inventou esta mentira, por favor? – o cara que não te merecia e tantas outras palavras de consolo. Acho que preciso de um, este salutar parque de diversões - daqueles que tocam música, vibram para cima e para baixo, no sentido horário e anti-horário. Quem sabe se depois do corpo exausto e da alma exangüe, acerto as contas?

E por que depois? E a tolerância zero? Cadê a minha obstinação? Foi pelo ralo? Virou figura de retórica? É agora que ponho a roda no mundo, que giro o meu desejo sem pudor algum. Machucou? Vai pagar. Agora tenho um motivo, um único e somente um para sair deste estado morno e inflamar. De vez.

Com todos. Não quero nem saber.

Operação sou mais eu, começa agora. Pisar de salto alto, sentindo os artelhos, a pressão dos dedos no chão. O meio-círculo da síndrome da pequena autoridade. Com aquele leve sorriso na ponta dos lábios, um esboçar de: e agora, meu caro? Como vai ser? Não tenho muita coisa, mas tenho pose, muita pose. E do alto dela, proclamo: o desejo é meu. Quero homens entumescidos, com o pau na linha do umbigo. Quero homens publicamente escondendo suas vergonhas, sem jeito, sem saber onde enfiar as mãos. Quero dizer a hora de entrar e de sair, de limpar com as costas das mãos, o gosto acre do gozo. E escolher quem tomba na minha cama, quem sai da minha noite e me relaxa o dia. E não mais tanta compreensão – pois ela só me fez criar vincos e cabelos duros e negros na ponta do queixo.
O espelho libera o narciso e o perfume veste as carnes expostas. A noite é insone e o dia marcação de território.

Martelo como numa cantilena amarga: nada de amiga, de colega, de companhia. Mulher em bando é prejuízo. Nunca fui gregária mesmo. A liberdade mora na solidão.

Um banho batismo, um café que me excite... e o roupão que acaricia. Pausa no espaço que ainda revela a nossa memória. Palavras, gestos, o ar com peso e medida. Tudo me lembra qualquer coisa e qualquer coisa é fraquejar... Um cheiro sobe, agudo. Vem do meu sexo...é fertilidade...eu sei...e ela, hoje, não me adianta de nada. A ultima vez foi como não saber o que dizer...então, despedida cruel. A anca exposta, o encaixe atabalhoado, nervoso, a cama e a fenda separando tudo...o sono interrompido...o cuidado que não se teve. Intuição é o pior castigo que uma mulher pode ter.

Merda.... café no roupão alvo. Maneira tola de emergir. Hora de partir de mim mesma, ser o lado mais sombrio, onde o desejo turva e a boca saliva. A raiva move os meus cílios em silêncio, umedece o canto da boca. Prometo em tom menor: o prazer será sempre todo e o todo só sempre para mim.

Fácil dissimular quando tudo é só brincar de marionete. Pronto. Acabou a brincadeira.