segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Dancing

Dancing

valéria Motta

Colocou suas mãos magras no balcão e fez sinal para Francismar, que veio rápido com seus olhos cheios de oceano.
- Já tá indo?
- Muita mulher hoje. Estou com disposição, não.
-Mas tu é mesmo um cara esquisito, hein? Uma fila de pernas louca pra riscar o salão e o senhor desdenhando.
- Já viu a qualidade da fila?
Francismar dá uma conferida discreta e sorri de boca fechada, assentando com suas pestanas compridas.
- Realmente... o mar, hoje, não está pra peixe.
- Deixa que na quarta lanço minha rede.
- E pra quê esperar até quarta? A semana está só começando, homem.
- Vivo só disso não, Francismar. Te devo quanto?
- Só foi uma cervejinha e uma porção de tremoços.
Retira do bolso algumas notas amarfanhadas, deixa sobre o balcão e se despede.
- Pode ficar com o troco.
Desce as escadarias do dancing sem a menor pressa. Cada degrau um acorde naquela sinfonia de cheia de mistérios e solidão. O choro da sua última cliente ainda grudava na sua retina.
- Acabou com meu estoque de lenços presidente... mulheres.
E balança a cabeça como quem se pergunta com quantas entranhas se faz uma alma feminina.
- Para soltar uma informação precisa dar mil voltas... e gastar um balde de lágrimas. Na próxima, cobro adicional de insalubridade. Hormônio em excesso dá nisso.
E acende seu último cigarro enquanto a banda afina seus instrumentos, pernas se ajeitam nas meias e as mãos de Francismar inundam de breu aquele imenso assoalho de parquet.
- Não quero saber de dama nenhuma caindo no chão hoje, hein?
- Mas é segunda, Francismar.
- E daí? Salão tem ritual, dona Imaculada. Não se pode sonhar no limbo, não é mesmo?
Imaculada apenas concorda com um aceno de cabeça e cutuca as demais que repetem o gesto, com suas cintas apertando as costas e dando cintura num corpo que há muito se multiplicara.
- Esta cinta é um espetáculo, Leninha. Em uma hora a gente desce um manequim.
- E tu acha que tô com essa falta de ar aqui, por quê? Acabei de descer dois números, filha.
- Danada...
- Só espero que eles não ataquem de soltinho... com esse aperto aqui só consigo ir até o samba canção e olhe lá!
Metais afinam enchendo a casa com o suingue norte americano. Não seria uma noite fácil para ninguém. Movimento fraco, banda enrolando, Franscimar contando as mesas, mulheres na sua ilusão de começo de semana e ele com seu corpo magro, terno de linho creme e sapato de amarrar bicolor, se deixando levar para casa com suas rodelas de fumaça, seus dedos compridos e o balanço do molho de chaves.
Até que... estanca ao vê-la retirando de dentro do sutiã uma nota enrolada e pagando gentilmente ao porteiro Big Jeff –misto de segurança, porteiro, dançarino de aluguel e cantor nas horas vagas.
- Brigadinha, Jeff.
- Já disse que com a senhora não tem tempo ruim. Se tiver na lona, o big libera.
Ela apenas sorri com os olhos, ajeita a cintura na saia rodada e sobe as escadas com o frisson da juventude. Esperança na ponta dos lábios, coração aos pulos e o corpo nervoso. Gostava desta sensação de descoberta, de coxia em dia de estréia. Quantos rodopios seriam necessários para que o tempo parasse e tudo ser como o deseja manda? Só a chama nascendo do enlace e o salão abrindo seus braços de grandes janelas. No fundo, dancing só servia para este instante e nada mais. Estava com a esperança acolhida no meio dos seios, liberta e feliz. E passou leve sem nem olhar para os lados.
Mas ele notou... e suspirou longamente como quem aprisiona aquele aroma que subia as escadas e se misturava ao tabaco. Algo de rosa, cravo, e um cítrico para amenizar este amargor que sempre tivera em sua língua. Que segunda feira seria essa... há muito não sentia um cheiro tão intenso assim. E tinha medo, seria capaz de confessar depois. Era hora de negociar num único murmúrio.
- Vou pagar pra ver, mas nada de umedecer a boca com palavras levianas, Macedo. Nada, hein?
Big Jeff na malandragem de quem conhece todos os degraus, sacudiu sua imensidão e brincou.
- E aí, doutor? Não resistiu, né?
- Fazer o quê, Big Jeff?
- A sorte é que tu mora em cima. Vai ser façinho.
- Aí , é tu que tá dizendo...
E o suingue já corria solto pelo salão. Era preciso subir aos atropelos. Antes que a perdesse completamente. Tem sempre alguém na esquina da pista pronto para pegar a dama alheia. Não queira dar esta chance, mas também não faria a corte. Só queria olhá-la com quem vê um filme milhares de vezes e depois se perder no ladrilho suado do banheiro. Será que já está dançando?
Conforme balançava seus ossos magros naquele retorno inesperado, ia desvendando aquela silhueta perfeita. Era linda... seios cheios, anca larga e pernas desenhadas a bico de pena. Tinha carne no lugar certo, nem magra demais – como ele – e nem gorda como a fileira de pernas que coroavam o salão. Era uma mulher que não se poderia deixar passar em branco... ela pedia assinatura.
Quando apontou no salão, sentiu-se como na primeira vez. Garoto de dezessete anos. Cabelo gomalinado, terno emprestado, sapato vulcabrás e olhar de espanto e gozo. Mulheres dançavam lânguidas de olhos fechados, casais faziam firulas no meio do salão e ele se embebedava de Cuba libre, sentindo-se pela primeira vez homem. Incrível como sempre retornamos ao que fomos um dia... ingênuos. Mesmo tendo passado bem dos 40, prateado as têmporas, vincado o rosto e encapado os dentes... ainda assim, ele se sentiu um menino diante de uma mulher como aquela. Cheia de liberdade nos olhos e fogo no corpo. E antes mesmo de pedir mais uma cerveja para meu fiel Francismar, ela já veio ao seu encontro com sua bolsinha de bolinhas brancas.
- Perdi muita coisa da banda?
- Só um set.
- Menos mal. Quer dançar comigo?
Assim direta como criança que pede uma bala. Ficou sem ação. Francismar só iluminou seus olhos, como quem vê uma grande onda e sorriu discretamente. Assenti num monossílabo, ela sorriu e enrolou seus cabelos para o alto com as mãos. Tirou um grampo de dentro do sutiã e deixou alguns fios caírem no rosto, emoldurando o desejo dele. Achou graça.
O fox se transformou num bolero, quando o trombone deu o primeiro acorde. Sabia que era daqueles que se dançava trançando as pernas, como um gato que serpenteia o chão. Beijou a mão da dama e a conduziu suavemente para a ronda do salão. Agora era tudo ou nada.

Sempre gostei de dançar na segunda feira. É bom quando os começos tem cheiro de fim de noite. Chão espelhando passos, gotas miúdas de ilusão descendo pela coluna e um leve aspirar de sonho. Este ritual semanal riscando na alma um único recado: a vida é rodopio, vamos nos divertir. Este é meu lema, por isso corro os dancings desta cidade atrás do giro perfeito. Será que este magrelo com cara de filme noir vai conseguir rodar a manivela até o tempo parar? E sermos apenas eixo, força que brota do olho do furacão? Não parece... mas se esforça.
A banda quebra o ritmo e dobra o tempo, começamos um pião de cruzar a pista e ele me olha com tanta intensidade que quase me convence de que tudo pode valer a pena. Sinto suas mãos desencarnadas apertando meu pulso, a distância entre nossos dorsos diminuindo gradativamente. Não, não foi pra isso que vim aqui. Gosto deste limite da física, muita proximidade quebra o encanto da rufada de ar no meio dos olhos. Sim, gosto quando sinto este leve sopro entre minhas sobrancelhas. É brisa leve que refresca memórias afetivas e nos faz rir de todas as ilusões perdidas.
Voltamos na cadência de um puladinho, um pé perseguindo o outro e o malemolejo dele é bom, não nego. Quase sinto os ossinhos do seu quadril roçando nas minhas fartas ancas. É bom, amacia o desejo. Será que com ele sigo pelo noite? Uma tirada de perna, um giro simples e o samba molha nossas testas, desfiando os desejos. Percebo a inveja daquela fileira de pernas brilhantes, com seus leques afoitos. Será que o cavalheiro não vai mudar de dama? Voltou aqui pra quê? Se perguntam entre uma golada e outra de coca cola com limão. Acho graça.
- Quer parar?
-Imagina. Agora é que vai começar o set que mais gosto.
- Milonga, acertei?
- Tango valse. Porque não gosto de parar unca.
E ele sorriu abaixando os olhos, como numa reverência.
- Primeiro tem que saber sofrer, depois amar
- Depois partir.
- Perfume de “ Naranja em flor... belo tango. Mas não é valse.
- Mas é minha vida. Vamos?
E a orquestra reinicia, agora com um bandoneón chorado... intenso... com seus veios de dor e saudade. Ele delicadamente subiu um pouco meu braço e me apertou num estilo bem milongueiro. Estava me convencendo o rapaz. Era bom dancarino, sim. Fazia o arranque com agilidade e cautela e me girava no pulso certo com muitos “oito cortados” e ganchos. Estava feliz, tinha que admitir. Mas não deixava transparecer. Uma dama nunca deve revelar o que seus olhos guardam, mesmo quando rodopia de olhos fechados. Se nos entregarmos, a contradança acaba... e o salão da nossa alma mofa com suas cortinas pesadas e seu chão em frangalhos. Não, esta chance ele não teria. Mesmo quando senti sua barba azulada gemendo no meu rosto...nem assim, consenti. O importante era não parar.
- Que linda...
Murmurou.
- Imagina...
Sempre falava isso quando palavras voavam pela minha cabeça... na falta, imaginar era sempre uma forma de ocupar espaço. Resposta vaga que pode dizer tudo que não queremos dizer. Imagina... o que realmente se passa dentro de mim agora, com esta música que rodopia aos borbotões , este homem tão leve como folha de seda e tão intenso como tabaco na boca. Não iria sucumbir ao ardor... juro.
Mas sucumbi.... sozinha no banheiro do dancing. Senti seu olhar desenhando minha coluna quando pedi licença para ir ao toalete logo que o set acabou, as pernas afoitas se descruzaram e os leques tamborilaram nas mesas. Ele deu um meio sorriso e me olhou como quem acaba de acordar.
- É rapidinho.
- Sou paciente.
E fui ajeitando a calcinha em cima da saia cinturada e as intenções expostas. O peito acelerava tanto que foi preciso molhar a nuca com água gelada antes que meus dedos se perdessem na noite mais escura que habita em mim. Súcubo com cheiro de laranja.
-Mulher não resiste a um toalete, não é não?
- Com certeza Franscimar... e essa pelo jeito, vai demorar.
- Mas a moça nem bebeu!
- Isso é o que você pensa.