segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Menos um

Valéria Motta


Coleciono noites, sapatos e pontas de cigarro. Escrevo com elas caminhos de cinza e gozo. E termino auroras em andaimes bêbados. É preciso manter o equilíbrio quando tudo gira em volta. Sopro e rodopio... beijos guardados e guardanapos de papel. Sigo à procura daquela curva que derrapa cada vez que chove no céu da boca e mastigo o embaraço do encontro sinuoso. Desviar sempre foi meu forte, falar nem tanto. O silêncio me pontua, mas é preciso provocar para que tudo se mantenha em algum lugar. Lugar que empalidece como sangue que se esvai do rosto. Lugar que não deixou de existir abruptamente.
Em tardes inchadas pelo mormaço desta voz que ainda ecoa, tropeço em calçados virados, pequenos obstáculos cotidianos. E lembro, por instantes, que não soletrei todas as silábas... comi o tempo antes que me devorasse. Instinto de preservação, talvez. Depois, mergulho a dor em bacias de gelo, respiro fundo, encadeio palavras de amor num ritmo sincopado e busco filetes de prazer perdidos em alguma gaveta. Encaro a noite de frente e acordo numa cama moldada pelo corpo que já fui. Solidão em reticências... menos um.