sábado, 22 de agosto de 2009

CODA - Monólogo de Fabio Gradel

- Mia bambina... Não sei bem como ou por onde começar, mas não tenho muita escolha. Então é melhor andar logo com isso. Não me leve a mal, mas como você já deve ter percebido, não tenho tempo a perder.

Me desculpe por sair assim da sua vida, ‘presto com fuoco’. Culpa das circunstâncias. Espero que entenda e me perdoe. Se bem que, lembra? Eu te dei alguns sinais. Mas você nunca me levou a sério... Vai ver que é porque rio de tudo. ... Até nessas horas.

Eu disse que ia sumir. Você achou que era piada ou brincadeira de mau gosto. Agora acredita em mim? Pra ser sincero, eu mesmo não tinha certeza, apesar dessa ‘coisa’ aqui dentro me dizendo que eu não ia demorar. Certeza é tudo que me resta. E, delas, nada me alegra mais neste momento do que saber que você não está do meu lado.

É engraçado como, de um momento pro outro, tudo pode mudar. O que parecia ser importante não vale mais nada, e vice-versa. Já teve essa sensação? Pra mim, a crise econômica não tem mais nenhuma importância. Tanto faz quem ganhou o jogo ontem, ou se o Flamengo vai ser campeão, dá pra acreditar? Terceiro mandato do Lula, aquecimento global, whatever... O que será, será. Importam-me agora outras coisas.

Senti um tremor agora, percorrendo meu corpo. Passou.

Não me importa o que virá. Mas, sim, o que já foi. E o que ainda é. O telefonema que ainda ecoa em nossos ouvidos. A piada já contada, mas ainda engraçada. A pasta à la carbonara que divido com a turma toda quarta-feira quando estou por aí. O pôr-do-sol no arpoador, depois de vigorosas pedaladas ao lado do Fernando, um privilégio. A gente não tem mesmo nada a provar pra ninguém, tamos no lucro.

Que som é esse, você ouviu? Parece a orquestra afinando os instrumentos, uma cacofonia que aos meus ouvidos sempre pareceu uma peça de Charles Ives. Você sempre acabava com a bagunça, dando o tom certo: lá maior. Mas aqui não tem lá, nem ré, nem dó. Só essa estranha sinfonia atonal. Mas, ainda assim, música.

Ah, a música... efêmera e eterna ao mesmo tempo! A quarta de Mahler. ‘Tudo’ de Mozart. Você estudando o violino, melodias de Bach misturadas com o burburinho da televisão. Minhas óperas, claro... E, evidente, o terceiro ato da ‘Tosca... “...O dolci baci, o languide carezze...”

Aliás, você há de convir, bem apropriado para este momento não é? Me sinto um pouco como o próprio Cavaradossi: cantando para as estrelas, a espera da execução.

Só que daqui não vejo estrela nenhuma. Só escuridão.

Me importam todas essas coisas, e muitas outras mais. Mas, principalmente, me importa você. Mas disso eu não preciso falar. Você já sabe.

Agora tudo escureceu. Foram as luzes que se apagaram, ou minha visão ficou turva? Está fazendo muito frio. Parece aquela noite em Viena, quando começou a nevar bem na hora que saíamos do ensaio final da orquestra. Você se chegou a mim, pra que eu esquentasse seu corpo. Peguei suas mãos e lhe disse brincando, “che gelida manina”... Eu e essa minha mania de citar árias de ópera! Mas era mentira, suas mãos não tavam assim tão frias.

Tem um homem do meu lado chorando muito. Queria consolá-lo, mas não sei o que dizer. Por que ele chora tanto? Estou meio confuso. Deve ser essa falta de ar que me acomete agora... Respiro, mas o ar não vem. E sem ar... nada vibra, nada acontece. Não posso mais desenhar no céu com a fumaça dos meus cubanos. E você sabe, nunca resisti a eles, principalmente acompanhado de um Nero D´Avola, melhor safra claro. Se esse é o preço a pagar por esses prazeres... é justo.

Acho que está chegando a hora. Será que você vai ouvir essa mensagem? Esse gravador vai resistir ao impacto? Não importa. Quem sabe ainda vamos rir muito disso algum dia, tomando um café em Paris. Uma outra Paris, diferente daquela aonde nem eu, nem ninguém nesse voo, iremos pousar.

Não sei quanto tempo ainda resta. Fecho os olhos e ouço a estrutura da aeronave gemer... ou é a afinação da orquestra? Estamos de novo naquela noite perfeita de inverno em Viena que nunca vai terminar. Te abraço mais uma vez. Sinto o calor de suas mãos, eternamente dentro das minhas.

É agora. Rufam os tambores! Um coro de duzentas vozes grita em uníssono. O barulho aqui dentro é quase insuportável. Preso ao assento, sinto meu corpo flutuar. Voar, morrer, deve ser assim. Va Bene...

Levanto uma batuta invisível e sorrio. Arrivederci, bambina. Minha próxima ópera vai começar.

(Dedicado a Silvio Barbato)

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